Por uma “Psicologia” Akbariana
Todos os que tivemos filhos, ou vimos uma criança nascer, sabemos que ela traz consigo algo indescritível, que a define, uma presença específica, ainda mais evidente no caso de gêmeos: diante da mesma condição genética, social, afetiva, cultural, etc., a singularidade de cada um é única. Um nascimento, como tudo o que aparece no mundo, é, para Ibn ‘Arabī, um sinal do desvelamento do Ser, uma correlação, tanto do ponto de vista ontológico quanto epistemológico, que se estabelece na reciprocidade amorosa entre pares de opostos; a criança e o meio em que ela nasce, seu momento histórico e a Presença que ela traz, estão um ao outro, em estado de transitividade, como o atravessamento entre as duas margens de um rio. Isto se remete a seu conceito de wujūd: “o encontro do Real em wajd”, que também descreve a interrelação entre Ser Necessário, o que Dele necessita e o Amor primordial. Partimos, portanto, de uma realidade trina: o Interior e o Exterior – o subjetivo/objetivo, o eu e o mundo – e a mútua atração da paridade.
Ele está mais perto de ti do que tua veia jugular (50:16), lembra o Alcorão. A jugular, a ponte que aproxima as duas margens do Si mesmo, a correlação mais próxima do sentido de unicidade pessoal. Para Ibn ‘Arabī, a presença da proximidade se revela pelo local que ocupa e este local é a ‘aynīyya.
Conhecemos a gama de possibilidades que ‘ayn tābita possui em Ibn ‘Arabī: o olho, a consciência, o ponto focal, o local vazio de si que recebe o desvelamento do ser, a entidade e a identidade, a fonte, o fluxo luminoso das águas da Vida. Como sugerem esses símbolos, o caminho que aproxima o ser do ente – e o trocadilho – é tão real quanto infirme. Se ‘ayn é fluído, tābita, fixo, estável, determina uma especificidade, uma configuração que identifica a qualidade da correlação e da singularidade que emerge nesta fonte. Retornamos à paridade da correlação: o fluxo-fixo, um processo criativo contínuo-discreto, eterno e histórico, visível e invisível, recriado a cada instante.
Esse vazio fluxo-fixo caracteriza-se pela receptividade aos Nomes e Atributos do Real segundo uma configuração (naša’a) e uma predisposição (ist’idād) específicas. É essa forma (sūra) que a criança traz ao mundo: uma expressão determinada das qualidades da existência, que emerge onde necessita e é necessária. Segundo tradução de Henry Corbin:
Os Nomes, que são os nomes da Essência – porque, ainda que não sejam a Essência em si, os atributos que eles designam não são diferentes dela – existem eternamente: estes Nomes são ditos ‘Senhores’ (arbāb) que frequentemente têm a aparência de hipostases ainda que não possam ser assim definidos. Nós os conhecemos somente pelo conhecimento que temos de nós mesmos. Deus se descreve através de nós mesmos, o que significa que os Nomes Divinos são essencialmente relativos aos seres a quem nomeiam, já que estes seres os descobrem e experienciam em seu próprio modo de ser. Estes Nomes são também chamados de Presenças (ḥaḍarāt), isto é, os níveis nos quais o Divino se auto-revela ao crente na forma de um ou outro de Seus infinitos Nomes. Assim, os Nomes têm significado e realidade plena somente através e para os seres que são suas formas epifânicas (maẓāhir), isto é, as formas nas quais estão manifestos. Estas formas são, eternamente, substratos dos Nomes divinos, existindo na Essência Divina. São estas individualidades latentes (‘ayn tābita)que, desde a eternidade, anseiam por tornarem-se seres concretos in actu1
Neste sentido, ‘ayn tābita pode ser entendida como o ponto receptivo ao influxo2 de wujūd, e constitui nossa “Identidade Essencial”, o núcleo espiritual, a partir do qual todos os demais níveis de presença adquirem realidade in actu simultâneo aos três mundos: o espiritual, o imaginal e o físico. É o fluxo desta fonte, vazia de si, mas plena de receptividade, que nos permite tanto conhecer o Real quanto nos tornarmos “reais”, vinculando passagem e permanência.
Wujūd está em “encontro”, um ato eminentemente criativo, e, portanto, todo ser “atrai e encontra sua vida”: se o Nome é O Generoso, a vida do indivíduo por ela entificado se dá como expressão de Generosidade, ou seja, os fatos e circunstâncias experienciados pelo sujeito são marcados ou inscritos pela Generosidade. Se o Nome é o Justo, a vida deste indivíduo gera questões e atos de Justiça. Assim, o Nome não define somente uma identidade/ipseidade, o que uma coisa é, mas o como, por que, onde, quando e quanto um determinado sujeito vive, acontece no mundo, a “esfera/arca/órbita de sua Vida (falāk al-hayy). Uma vez mais, como afirma o Alcorão, cada criatura traz seu destino pendurado no pescoço.
Do mesmo modo como o Real é Um/Múltiplo, assim também a ‘aynīyya. O sujeito é, então, múltiplo3, intrinsicamente relacional em si mesmo, uma condição que Ibn ‘Arabī se refere por Tarjumān: por um lado, é multifacetado, congregando diversos Nomes, que descrevem suas potencialidades criativas. Por outro, como estes Nomes pertencem, de fato, ao Senhor – a singularidade específica a cada forma divina – cada nome, conforme expresso no ser humano, é um “intérprete”, um ator do Real e um “tradutor” do fluxo da Realidade. Assim, conhecer a si mesmo, como afirma Ibn ‘Arabī, implica em conhecer o Senhor, a configuração divina de cada um de nós que, descrita por um número determinado de Nomes, atravessa o múltiplo e nomina o Real, o único nominado. No entanto, o próprio ato de conhecimento depende da qualidade das presenças de wujūd que respondem por nossa entificação: O Generoso não apenas entifica a Generosidade, mas conhece, compreende e abrange o Real por meio da Generosidade.
Para Ibn ‘Arabī a observação dessas presenças inclui três fases4. A primeira é a compreensão de que o Real conhece o que as criaturas mantém em segredo, pois é Ele mesmo quem descende em todo local de emergência ou aparecimento. Isto indica que, por mais que uma situação nos seja incompreensível, encontrou wujūd, existência. Para contemplá-la é necessário retornar a atenção ao Real. O segundo modo é a certeza que o Real também nos contempla e isso exige “observar o observador”, estar atendo ao próprio comportamento. Sobre o terceiro modo, a observação do coração, também inclui a atenção aos outros, ao meio ambiente ou ao espaço exterior, pois a circunstância externa indica a necessidade de uma presença determinada que entra em correlação com aquela que se desvela em cada um. Ibn ‘Arabī escreve:
A terceira modalidade de observação (murāqaba)5 é aquilo que tu observas em teu coração e em tua alma, o interior e o exterior, de modo a ver o influxo de teu Senhor (Cuidador) naquilo que vês, e agir apropriadamente. Isso é assim em relação aos seres exteriores que observas, para, através deles, encontrar a presença de teu Senhor, conforme Sua palavra: Mostrar-lhes-emos Nossos sinais nos horizontes e neles mesmos (A. 41:53). Nessa observação há uma ligação com o Real, pois não há aí nenhum agente gramatical ativo, mas somente o Real (O Verdadeiro) (Trad. Eric Winkel, The Inter-Actions I, p. 355).
“Nenhum agente gramatical ativo” indica a Presença sem referência pronominal histórica atuante, um influxo de ser não delimitado por uma experiência da biografia, mas atualizado no instante, o que lhe confere a condição de “testemunho” presencial. Temos portanto, duas margens do Eu Sou: uma potencial, o Eu que responde por “Ele”, o Si mesmo, o Senhor; e outra que O atualiza, o servo, chamada eu-mortal, ou eu-bašarī, a face exterior que serve, prova ou experimenta o Real de acordo com sua “Identidade Essencial”. Como escreve Philippe Moulinet:
O testemunho é aquele que está presente no evento. O evento existe para mim sob a forma de minha presença. Assume a forma de minha imagem. Conheço o que sou no momento em que o evento me toca, quando recebo a informação. Não é o evento que acontece; o que acontece, o que é conhecido, é a forma de meu ser. A imagem no espelho é a imagem do ser que a contempla, e, portanto, tudo o que ela testemunha é o ser que lhe dá forma (2010, p. 379).
Isto equivale a dizer que os eventos do mundo, os desvelamentos divinos, a partir da especificidade de cada Nome da Identidade, assumem forma de acordo com o testemunho inerente a cada criatura – a diferença entre os atributos testemunha a especificidade de cada um. Por outro lado, cada um de nós também só se reconhece a partir da interação com o outro, do mesmo modo que na metáfora do espelho, onde o outro nos reflete a partir do que ele é, do que ele vê de nós, e do modo como nos projetamos sobre ele. Se lembrarmos que a imagem aparece no espelho de acordo com a forma do espelho, nos refletimos mutuamente na medida de nós mesmos: se o espelho é pequeno, grande, côncavo, convexo, polido ou enferrujado, assim será seu modo de reflexão. E isto nos leva a entender que o que aparece em cada evento é sempre o Si mesmo, mas seu aparecimento depende deste local de manifestação ou espelhamento, da capacidade do eu-bašarī atualizar os comandos de seu Senhor, que unifica os aspectos da Identidade, descreve e expressa o propósito da existência e concede a oportunidade da melhor situação de vida possível para a plenitude do si. Escreve o Šaiḫ:
Se tu olhares para as essências das coisas possíveis verás que não há nada que determine o predomínio tanto da existência quanto da não-existência. O Senhor é quem dá preferência ou à existência ou à não-existência, à vinda à existência num tempo, lugar e posição determinados; é Ele quem estabelece as relações entre as coisas e seu tempo, lugar e circunstâncias de vida. Ele assume o que é mais adequado para as criaturas e faz com que elas apareçam naquilo, pois Ele só faz com que apareçam para que O glorifiquem e que O conheçam de acordo com sua capacidade. Isto é tudo. E é por isso que tu verás algumas coisas antecederem outras no tempo, algumas inferiores e outras elevadas, pois passam por variações através de diversos estados e níveis (F. IV 199.15)6.
Assim, o aparecimento possui diversos níveis (marātib) e realidades (ḥaqā’iq) e cada um destes níveis exige tanto uma relação específica com o Real quanto um relacionamento entre as criaturas. Escreve o Šaiḫ: “Ele é o Compassivo, o Perdoador, o Generoso, o Vingador. É impossível que os efeitos dos Nomes se encontrem dentro Dele ou que Ele seja um local (maḥall) para seus efeitos. Assim, para quem Ele é Compassivo? A quem Ele perdoa? Para quem Ele é Generoso? A quem perdoa? De quem Se vinga? Portanto temos de dizer que o Criador demanda pelo criado e o criado exige o Criador” (F.III,616.27). Se o Real é O Perdoador, haverá uma criatura que O porta ao mundo, face a outra criatura que necessita Perdão. Nesse sentido, é importante voltar a face ao Senhor, o que significa tornar o eu-bašarī receptivo à Identidade Essencial, para que a Presença do Perdão se faça de acordo com a necessidade do momento.
Esse processo, do mesmo modo que os níveis, possui diversos estágios, e implica em estados de identificação que o indivíduo estabelece em suas relações: se identificado com as necessidades imediatas do corpo, sua consciência se mantém nessa esfera; se identificado com a auto-afirmação do eu, aí está seu limite, e assim sucessivamente. Os níveis de identificação equivalem a véus que tanto encobrem quanto desvelam a realidade e, segundo o Šayḥ, só conhecemos o Real por detrás de uma cortina, ou de uma “sombra”, que são nossa própria condição e ponto de visão. Um modo imediato da presença dessa cortina é nafs, da raiz nafas, que significa “alento” ou “respiração”. O alento indica desde a capacidade respiratória mais básica até o influxo do atributo essencial ou a presença do Nome divino que rege um instante e mantém o Cosmos “Vivo”. Deste modo, o “eu” é um suporte de uma realidade: quanto mais velado, mais restrita e infirme essa realidade e quanto mais ampliar sua capacidade de testemunhar o Real, maior sua abrangência e sua “firmeza”/fluída ancoradas no Real. A passagem por esses diversos estágios, ou níveis, depende da habilidade do coração de presenciar o Si mesmo a partir do alento mais fundamental que é o influxo dos Atributos que se manifestam na Identidade Essencial, a qualidade do fluxo da existência que ressoa ao ritmo do coração.
Se, por um lado, o eu recebe o influxo da Identidade, por outro, pode estar inconsciente6 desta realidade e, ignorando sua condição de dependente, de “sujeito” ao “ato” do Nome, julga-se uma realidade independente em si mesma: é o estado de “pretensão”, apossando-se daquele atributo. Com a face voltada para o mundo, tanto “sujeita-se” ao mundo, recebendo a influência de outros e fragmentando seu sentido interior de “eu”, quanto temporariamente se “distancia” da presença da Identidade. O estado de presença com o Senhor, a permanência na esfera da vida do coração, núcleo do si mesmo, é condição de tawḥīd, de individuação entendida como “unicidade”, enquanto a identificação com o mundo, com os outros, é uma fragmentação, o que significa um adoecimento, pois tem o sentido de identificação com uma “infirmidade”. Nesse processo o indivíduo oscila em extremos, ora acentuando o influxo de um Nome essencial e ora negando-o, em função de identificar-se ora com a própria sombra e ora com a sombra alheia, permanecendo, em ambos os casos, inconsciente ou “esquecido” de si mesmo.
Tomemos, por exemplo, o Compassivo, a capacidade de aceitação e acolhimento. Alguém caracterizado por este atributo experimenta situações em que necessariamente precisa deixar de lado a vontade própria e priorizar o outro. Estas situações se repetem em intensidade crescente e, como o indivíduo desconhece o influxo desse atributo essencial sobre ele, ora aceita tudo passivamente e ora torna-se intolerante, oscila em extremos, gerando estados de dor, tristeza, angústia, medo, ou irritabilidade, ira, etc. Essa oscilação é sinal de sua infirmidade, de que sua consciência não está em reciprocidade com o Real, pois, se fosse assim, saberia que a expressão “equilibrada” do Compassivo é a medida da necessidade, isto é, correlata à situação. Como a Compassividade é inata em tal indivíduo, sua inconsciência do processo é observada como uma repetição de padrão7 de comportamento onde a exigência da Compassividade é vista como uma sobrecarga para o eu.
Também é comum a comparação dessas dificuldades com outras pessoas. No entanto, o que não se realiza, é que pessoas distintas vivenciam as mesmas circunstâncias a partir de Nomes distintos. Esta atitude, ao invés de aliviar a pressão essencial sobre o eu, intensifica-a, pois o sujeito sente-se fragmentado, “fora de si”, e sua dor é ainda maior que a intensidade da exigência do atributo essencial. “Obedecer” ou “desobedecer” ao Real não significa, portanto, uma “legalidade” instituída cultural ou religiosamente, mas uma condição do sujeito em relação à própria Identidade. Se a Compassividade caracteriza a essencialidade de um determinado indivíduo, quem mais sofre com a intolerância é ele mesmo, ao passo que o “outro”, aquele que provocou nele uma reação de intolerância, vai receber esta reação a partir de um Nome diferente e, portanto, com uma percepção distinta da realidade.
Um estado de infirmidade também pode se dar quando uma circunstância exige mais do que um Nome ou quando vários Nomes são acionados simultaneamente para lidar com uma realidade; ou o indivíduo se identifica com suas sombras, seus processos reativos históricos.Tudo isso leva à enfermidade, que começa exatamente pela desconexão essencial: quando o indivíduo se identifica com outros que não a Identidade Essencial, ele passa a encobrir mais e mais a própria vida, isto é, ao invés de remover os véus das situações e entender o que está de fato ocorrendo por detrás de cada circunstância, ele esconde, com modos reativos, ainda mais a realidade. Com isso o fluxo da vida deixa de seguir livremente e temos o adoecimento em vários níveis.
Uma outra característica de todo existente é a paixão. Ibn ‘Arabī usa a palavra hawa, que no senso comum denota impulso, paixão, desejo de qualquer espécie, mas que, quando observamos suas raízes, também encontramos sentidos como vento, abismo, espaço, ar, soprar, abrir profundamente, morrer. O conjunto destes sentidos remete a um estado de amor arrebatador, tal qual a imagem do vento que se precipita no abismo. O Šaiḫ associa esta paixão ao amor divino, mahabbab – o desejo de auto-manifestação divina – o mesmo conceito que conflui no Alento do Todo Misericordioso e na paixão inerente à determinação de cada Nome divino, o que intensifica o impulso criativo do Atributo, fazendo com que o indivíduo reaja compulsivamente.
O mesmo se dá na distinção si-mesmo/outro. Se o sujeito humano é ignorante da presença dos Nomes divinos na constituição de sua Identidade Essencial, tende a um separatismo apaixonado entre si e o outro, e não percebe as formas externas como formações múltiplas de uma mesma realidade. O conflito é inevitável. Por outro lado, este é o “nível” em que seu Senhor se desvela à sua percepção: há uma reciprocidade inerente à existência, ao limiar imaginal entre o desvelamento e o “retorno” da identidade para o sujeito que se desvela. Este limiar funciona como um filtro onde a realidade é experimentada de acordo com a configuração e o preparo do sujeito que a contempla. Porém, no fenômeno da reflexão, há sempre uma contra-partida, uma reciprocidade de “inversão”:
Cada vez que um gnóstico contemple uma forma que lhe comunica um novo conhecimento que não possuía antes, esta forma será a expressão de sua própria identidade (‘ayn) e em nada estranha a ele. É da árvore de sua própria alma que ele colhe os frutos de sua cultura, do mesmo modo que sua imagem refletida sobre uma superfície polida não é outra que ele mesmo, ainda que o local da reflexão – a Presença Divina – que lhe confere forma, provoque as inversões segundo a Verdade essencial inerente a tal Presença.8
A raiz da enfermidade está, portanto, na ignorância ou no esquecimento (inconsciência) de si que leva à “ferrugem” do coração. Como o coração é o núcleo onde reside o alento vital e o alento decorre da presença essencial, o coração é o espelho onde o Real se contempla e esse espelho se enferruja com sentimentos negativos, julgamentos, sombras, máscaras do eu, etc. O Šayḫ escreve:
Algumas vezes Ele alerta (as criaturas) sobre a letargia ou a inquietude através de algo que faz descer sobre elas como uma “infirmidade” (‘illa) e uma “enfermidade”. Quando a pessoa perde a saúde e sente dor, sabe que uma aflição desceu sobre ela… Outras vezes, Ele alerta os servos através de uma sabedoria que se manifesta neles sem que haja uma infirmidade de nafs. Como o Real é idêntico com suas ‘illa9 isto lhes acontece subitamente, como um desvelamento divino… Mas acima de tudo, alguns alertas divinos são dores e calamidades que as almas desgostam por natureza e elas se voltam para um Nome que unifica todos os alertas e, assim, voltam-se a ‘illa. No final das contas, a enfermidade é chamada ‘illa e é um dos mais poderosos alertas para o retorno a Deus, pela fragilidade que ela confere. Então Deus faz das ocasiões um véu sobre Si mesmo e as criaturas curvam-se diante do véu. Deus então é esquecido e o crédito transferido ao véu (F. II, 490.3: SDG, p. 126).
Note-se a sequência do exemplo dado por Ibn ‘Arabī: a letargia ou a inquietude são polaridades de um mesmo sentimento e esse sentimento se refere a um desvelamento divino na forma de um de Seus nomes. E estes extremos são infirmes tanto porque oscilam quanto porque são associados a uma causa que em si mesma já é efeito do próprio comportamento ou nível de identificação do indivíduo. Lembremos que falar em nível de identificação implica tanto em uma ontologia quanto em uma epistemologia, um modo de ser e um modo de consciência. É nesse momento que o indivíduo se lembra de chamar pelo auxílio Divino. Note-se, no entanto, que esse Nome através do qual o indivíduo clama por Deus, é invariavelmente um dos Nomes que o entificam em sua Identidade Essencial. Se a enfermidade surge a partir de um estresse, por exemplo, o indivíduo sabe que precisa de Paz, e, portanto, clama pelo divino através do Nome O Pacífico ou O Pacificador, “Dai-me Paz!”. Assim, a situação de estresse é um véu que encobre a necessidade da Paz. Quando o indivíduo se volta para “O Real na forma da Paz”, sua dor começa a amenizar pois ele se alinha com o influxo da vida que constitui sua Identidade Essencial segundo o aspecto da Paz. Uma vez que a Paz (O Real) retoma seu influxo ou sua presença, o remédio ou o meio terapêutico usado, a “causa secundária” do alívio da dor, recebe o crédito da “cura”. O indivíduo novamente se esquece do influxo da Paz. O mesmo ocorre com qualquer outro Nome, de modo que todo caminho leva tão somente ao Real, seja pela dor ou pelo amor, ninguém escapa de si mesmo nem da proximidade Daquele que nos é mais próximo que a veia jugular (A. 50:16). Inúmeras vezes Ibn ‘Arabī retoma este versículo do Alcorão para nos dizer que, de um modo ou de outro, a Vida está sempre certa e do modo que deve ser. Conta ele:
Certa vez tive por uma dor no braço. Voltei-me a Deus, queixando-me – o retorno de Jó – em cortesia a Deus, para não resistir ao jugo divino, como faz o povo da ignorância10, que, resistindo, julgam-se o povo da entrega, dos que confiam tudo a Deus sem protestar por nada e assim associam duas ignorâncias. Quando realizei o que Deus me fez entender através daquele sofrimento, falei: “Reclamei a Ele sobre meu braço, por ter pouca resistência”. Então disse à minha alma: “Chame por Ele! Onde está seu clamor quando estou expandido?” E ela me respondeu: “Reclamarei junto Dele por ti, minha perda é o mesmo que meu ganho”.
Se eu não me queixasse sobre o que me ocorria, teria escapado disso e da minha natureza, o que seria uma ignorância, conhecida pelos corações que são companheiros de um estado por seguirem os profetas. Se eu não tivesse me afastado Dele, clamor algum me levaria de volta a Ele.
Então disse Àquele que me chamou: “A Seu serviço!”11
Ele respondeu: “Não desejo nada senão deleite. O afã expandiu-se, aproveite! Alcançar-me é o mesmo que se aniquilar!”
Então aliviou-se o que eu havia encontrado e o que eu havia testemunhado se ausentou de mim (F. III, 245.33: SDG, p. 122).
O diálogo que o Šayḫ mantém com sua alma, usando expressões próprias de sua época e de sua religiosidade, mostram que ele se volta para seu interior e tenta identificar o motivo da dor a partir da sua relação com o divino, mas não apenas de um ponto de vista dogmático, como é próprio das práticas religiosas, mas do divino que o habita, do divino do qual ele depende pessoalmente, de seu Senhor. Se ele não tivesse se voltado para essa Presença, provavelmente atribuiria a dor a alguma outra circunstância externa, e deixaria de testemunhar em si mesmo a falta de sua “presença” diante da Presença do divino. Isto significa que, por alguns instantes, sua atenção havia se distanciado do Real e ele se ausenta da Presença do atributo que o regia naquele instante. Quando ele retorna e, como muçulmano, recita a expressão “labaik allahuma labaik!” – aqui estou, meu Senhor, a Seu serviço!”, retoma consciência do influxo do aspecto essencial dominante no instante e sua dor alivia. O Real, por sua vez, responde em seu íntimo através da certeza de que alcançá-Lo é o mesmo que aniquilar o eu-bašarī. A receptividade do eu ao Senhor libera o servo da dor.
A falta de auto-conhecimento nos leva igualmente à falta de reconhecimento da singularidade alheia e a estados reativos fundamentados em valores inconscientes e de pré-julgamentos. Esta é uma forma de “enfermidade” muito comum: uma observação mais atenta pode mostrar, por exemplo, que o sujeito generoso (ou o gentil, ou o bondoso, ou o corajoso, etc.), por agir de modo inconsciente em torno da Generosidade, espera que o outro também aja a partir desse valor. Isto quer dizer que o influxo essencial, apesar de desconhecido para a maior parte das pessoas, tem uma força ontológica de manifestação mais intensa que a reatividade do eu, mas o eu, como receptáculo dessa força, a expressa a partir de si12 enquanto sombra, de seus caprichos particulares e não conforme o influxo da Presença essencial, provocando uma polaridade eu-Si mesmo, interiorexterior, exterior-interior. A partir dessa inconsciência/velamento surgem os padrões compulsivos ou repetitivos de comportamento: o indivíduo generoso, em um determinado momento, cansa-se de ser generoso pois, a partir do entendimento e estados do eu, ninguém é tão generoso assim com ele: como desconhece sua Identidade, exige dos demais aquilo que o caracteriza essencialmente e, por mais que os outros tentem corresponder às suas expectativas de generosidade, jamais alcançam a intensidade da generosidade que caracteriza o influxo do nome O Generoso, pois suas Identidades são agrupadas em torno de outros Nomes. Conforme escreve o Šayḫ:
Deves saber que o Real não criou as criaturas com uma mesma constituição. Ao contrário, Ele as fez de constituições diversas. Isto é óbvio e auto-evidente para quem observe, em função da disparidade entre as pessoas, quer se compreenda a partir do pensamento racional ou da fé. Deus nos disse que o homem é o espelho de seu irmão. Assim o homem vê em seu irmão alguma coisa de si mesmo que não veria sem este. Pois o homem é velado e enamorado por seus próprios caprichos. Mas quando vê um atributo no outro, quando este atributo em realidade é seu, vê seu próprio defeito no outro. Então conhece sua feiúra, se o atributo é feio, ou sua beleza, se o atributo é belo (F. III, 251.3: SPK, p. 351).
Aquilo que vemos como “falta” no outro refere-se a nossos próprios atributos e o que julgamos como feio ou belo depende do atributo com o qual estamos operando no momento, pois o julgamento, a sensação de falta ou excesso de determinada força essencial ocorre a partir da determinação do Si mesmo. O indivíduo passa a considerar os valores ou forças presentes na Identidade Essencial como se fossem originários nele mesmo, ou como se fossem méritos pessoais, desconhecendo que, de fato, está construindo apenas uma sombra de si que volta a vivenciar as circunstâncias a partir de suas experiências históricas e, portanto, não age, somente reage. A recriação a cada instante, associada à repetição inconsciente de padrões de comportamento conduz o eu a expressar o influxo da Presença essencial a partir de seu próprio limite, e isso gera um estado no qual não mais dá conta da sua expressão. Surge então uma condição generalizada de falta de energia, de cansaço, de desgaste físico, emocional e mental e o indivíduo passa a agir de acordo com o polo oposto da expressão essencial: no caso da Generosidade, torna-se mesquinho. Assim, a atribuição da virtude a si (eu-bašarī) não comporta a pressão ou a intensidade da presença da Identidade e invariavelmente sucumbe à reatividade ao invés de experienciar o fluxo da presença essencial e sua receptividade às circunstâncias que necessitam da Generosidade.
Note-se, no entanto, que a oscilação em extremos ocorre na experiência do indivíduo e não na força essencial: a mesquinharia não é o oposto da Generosidade13, apenas a resposta do indivíduo que atribui a Generosidade a seu eu-mortal. Sentimentos, pensamentos, percepções, sensações desse patamar de consciência são modos de sustentação e defesa da “sombra” ou do eu-mortal e nada informam da essência senão a necessidade de voltar a face ao Senhor, a necessidade de que o eu é incapaz de dar conta da realidade.
Quando o desequilíbrio é experienciado, há um desalinhamento entre sujeito e Identidade que deve ser reorientado de modo a restaurar o equilíbrio. Ibn ‘Arabī trata do assunto do mesmo modo que um indivíduo doente precisa do auxílio de um médico:
O médico divino trata os traços de caráter e disciplina os desejos individuais da alma através da lembrança, do aconselhamento, e chama a atenção para assuntos elevados e aquilo que pertence àquele que o ouve… Quando o médico divino surge, e ele é o Profeta, ou o herdeiro do Profeta, ou o santo – examina o que é exigido pela configuração (naš’a) da alma. A alma submete-se a ele e coloca as rédeas em suas mãos, de modo que ele a treina e toma atitudes para que atinja a felicidade. Se a alma está em desequilíbrio, o médico a conduz ao oposto, ao que sua configuração exige, explicando-lhe como usar aquele desequilíbrio de tal modo que será louvado por Deus e a alma encontrará sua felicidade. Pois o médico não pode configurar a alma em uma nova configuração, já que “Teu Senhor concluiu criação e caráter”. Nada resta em suas mãos senão esclarecer as ocupações próprias da alma ( F. II236.3: SPK, p. 305).
Por outro lado, a instabilidade é característica do movimento da vida que, como expressão da Identidade, constantemente atualiza-se em traduzibilidade interior-exterior, exterior-interior. A experiência do desequilíbrio tanto pode provocar felicidade (expansão), quanto sofrimento (contração), dependendo das relações que se estabelecem na polarização das situações entre dois ou mais indivíduos ou no indivíduo ele mesmo. Vale lembrar que tanto os estados (os sentimentos, circunstâncias, pensamentos ou o modo de ser transitórios do sujeito) quanto as estações (planos de consciência, nível de proximidade com o Real) respondem pela experiência de prazer ou dor, enquanto a experiência da Identidade é experiência de “êxtase”, estado de consciência unitiva e amorosa (wajd). Assim, por mais difíceis que as circunstâncias se apresentem, diz o Šayḫ, ambas as mãos divinas são benignas; prazer e dor, expansão e contração ou qualquer outro par de opostos conduzem à necessidade da Presença essencial pois os os traços de caráter, enquanto qualificativos da Identidade Essencial, produzem situações de vida – pelo movimento de interação do próprio sujeito com os demais – que provocam e exigem a presença daquele traço em particular e, como consequência, a experiência dos estados são diferentes em diferentes indivíduos. Deste modo, o “equilíbrio” não é evitar os extremos e sim estabelecer a receptividade à traduzibilidade da vida: em alguns momentos é necessário um máximo de Generosidade e em outros, esse mesmo máximo é uma distorção. Podemos considerar essa “ciência do equilíbrio” como o adab, vivenciado a partir da sinceridade do coração à Presença que se manifesta na medida em que se faz necessária.
Ibn ‘Arabī conta, nesse sentido, uma experiência pessoal. Diz ele que, enquanto escrevia o capítulo 167 das Futūḥāt, exatamente sobre a “Alquimia da Felicidade” e estava prestes a descrever a “estação de Abraão”, soube, de ante-mão, sobre algumas circunstâncias que exigiriam dele Clemência e Compassividade:
Saiba que enquanto eu estava no processo de escrever estas linhas, perto do maqām Ibrāhīm… fui tomado pelo sono e ouvi um dos espíritos do Pleroma Superior anunciar, da parte de Deus: “Entre no maqām Ibrāhīm” – um maqām que, para Abraão, consistiu em ser compassivo (awwāḥ) e clemente (ḥalīm)” (A. 9:114). Então entendi que Deus necessariamente me daria as forças que acompanham a Clemência pois alguém só manifesta Clemência em relação a pessoas sobre as quais possua ascendência. Também soube que Deus me testaria por meio de acusações difamatórias que seriam ditas contra mim e que me afligiriam muitíssimo, pois Deus usou a palavra ḥalīm, que é forma de intensidade. Além do que, Abraão foi descrito como awwāḥ, que é uma palavra que se aplica estritamente a alguém que suspira demais quando percebe a Majestade Divina, sendo incapaz de Lhe render glórias, pois o ser contingente é incapaz de exaltar e glorificar a Majestade Divina como Ela merece (F. I, p. 722, trad. Addas, 2000, p. 124).
Através deste relato podemos compreender que Tanto a Clemência quanto a Compassividade vão se manifestar onde são “necessárias”, do mesmo modo que é “o que necessita” que demanda o Necessário enquanto o Necessário em Si só se manifesta onde é “necessitado”. Ibn ‘Arabī sabe que vai sofrer circunstâncias difíceis que exigirão dele a máxima resposta da Clemência. Por outro lado, sabe também que a Clemência, por sua própria essência, preconiza ascendência sobre aqueles que a demandam: o ser Clemente só exerce a Clemência a partir de um patamar “acima” ou seja, sobre alguém ou uma situação em que possua ascendência. Já a Compassividade, em sua característica fundamental de aceitação amorosa e submissão, “suspira” diante da Majestade. As duas forças associadas geram a circunstância em que o Šayḫ é submetido a acusações violentas, sem ter outra alternativa senão aceitar e desculpar. Por outro lado, a aparente fraqueza do Compassivo, exposto à tirania, revela-se como uma “força” que absorve o impacto sem se fragmentar, justamente por não confrontar, isto é, o “confronto”, nesse caso, é a própria habilidade de “sujeição” que não prioriza o confronto.
Como Ibn ‘Arabī é consciente da presença do Clemente em sua própria identidade, sabe que receberá forças para fazer frente à situação; seu “eu-bašarī” apenas precisa se abrir para receber a presença do Clemente na medida em que a Clemência seja necessária naquela circunstância. Vemos novamente a transitividade interior/exterior, tanto em Ibn ‘Arabī ele mesmo – para conseguir fazer frente à demanda exterior – quanto aqueles que o difamam também “necessitam” da Clemência. Se necessitassem, por exemplo, da Confiança, não agiriam com calúnia e difamação. Mas note-se, por outro lado, que só caluniam e difamam porque Ibn ‘Arabī, ele mesmo, é portador da Compassividade. A observação das circunstâncias da vida, dos próprios sentimentos e pensamentos, ajuda a compreender a influência do Nome ao qual estamos sujeitos, desde que entendamos que a falta de auto-conhecimento – que implica em distanciar-se de seu Senhor – produz qualquer tipo de sentimento, dependendo do quanto a circunstância ameace a auto-preservação do eu.
Tomando o exemplo do Šayḫ, na medida em que ele vivesse as circunstâncias de injúria e agressão e se identificasse com o valor externo que as motiva, sem consciência da Clemência e da Compassividade, a tendência do eu seria se polarizar, fragmentar sua condição interna de unicidade (tawḥīd) e opor-se fortemente ao agressor segundo a dinâmica peculiar do agressor. Isto significa intensificar os traços de base14, aqueles que são firmados na dualidade, externos ao indivíduo. De um modo contemporâneo, podemos dizer que o indivíduo assimila padrões de comportamento alheios à sua realidade essencial e se distancia cada vez mais de si mesmo, o que, necessariamente, lhe traz infelicidade. Na linguagem de Ibn ‘Arabī, isto “enferruja” o coração e progressivamente distorce o influxo da luz da Identidade sobre o indivíduo.
Outra possibilidade é que, quando a expressão do sujeito é experienciada negativamente, pode haver uma falta de reciprocidade na expressão da Identidade, assim, quando se relaciona com o outro, não o faz a partir de sua própria realidade e não respeita a realidade alheia. O sentimento negativo pode, então, se expressar como resposta de um Nome a um indivíduo ou circunstância onde não há um encontro com wujūd e, portanto, a reação tende a conduzir à “não-existência”, a um padrão que nega wujūd, sem receptividade entre o que “necessita” e o necessário, mas simplesmente uma exigência sem correspondência àquele que realmente demanda. Em outras palavras, um indivíduo cuja consciência esteja limitada às próprias representações e crenças, não tem abertura ou sensibilidade suficiente ao outro para estabelecer uma relação de reciprocidade. Sem essa reciprocidade ele não encontra “realidade”, mas uma deformação da própria crença e com isso sua reação encontra o “mal” enquanto sentimentos negativos que tendem a representar o eu como absoluto e levar ao sofrimento, tanto pessoal quanto dos que com ele convivem.
Trata-se, então, de ordenar ou harmonizar a resposta pessoal ao Nome verdadeiro que se apresenta e pede pela afirmação de sua realidade. É o “tornar íntegro”, isfād, método relacionado à presença do Senhor ou do Nome dominante do momento. Ibn ‘Arabī lembra que o atributo básico do nome Senhor (rabb) é iṣlāḥ, palavra que significa “tornar completo, sadio, íntegro” ou ainda remediar, conciliar, estabelecer a paz, de modo que o cosmos necessita do Senhor para que possa chegar à sua própria maṣlaḥa, palavra da mesma raiz e que significa integridade. O oposto deste é o estado de corrupção e o corromper, ifsād, que podemos entender também como fragmentação, distância de si mesmo. O Si mesmo, portanto, é aquele que leva à individuação enquanto “tornar-se real”: Vivo, Consciente, Capaz, Desejoso.
Como a configuração da Identidade Essencial implica na presença de vários Nomes, há uma “rotação” de preponderância entre eles, de modo que a cada momento estamos em um novo “estado” e a realidade nos exige um movimento novo, o que leva Ibn ‘Arabī a falar sobre o “conflito” (tanāzu‘) entre os Nomes:
Um Nome divino chama por alguém que é governado pela propriedade de um segundo Nome divino quando sabe que esta propriedade chegou a um termo. Então outro Nome predomina. E assim continua, neste mundo e no próximo. Deste modo, todo outro que Deus é chamado por um Nome divino à geração de um estado (ḥāl kawnī) ao qual o Nome se liga. Se o objeto do chamado responde, é dito “feliz”, sa‘īd, (ou “bem aventurado”). Se não responde, é dito “desobediente”, “desventurado” (šaqī).
Tu podes discordar e dizer: “Como pode um Nome divino chamar e a criatura se recusar a responder já que é frágil e submissa ao poder divino?”. Nós responderíamos: Não se recusa a obedecer em relação a si mesma e à sua própria realidade, pois está constantemente submissa. Mas, como está sob o controle de um Nome divino, este Nome a impede de responder àquele que a chama. E então ocorre um conflito entre os Nomes divinos. No entanto, os Nomes estão em condição de igualdade e a propriedade dominante pertence ao dominante que é o Nome que a possui quando o segundo Nome chama. Nesta situação, aquele que a possui é mais forte.
E então discordarias: “Por que a pessoa seria responsabilizada por esta recusa?” E responderíamos: porque ela atribui esta recusa a si mesma e não ao Nome divino que a controla.
E discordarias: “A situação ainda é a mesma, já que ela se recusa em função do domínio de um Nome divino”. E responderíamos: É verdade, mas ela é ignorante a esse respeito e é responsabilizada em função desta ignorância (jahl), pois a ignorância pertence a ela.
E ainda discordarias: “Mas sua ignorância deriva do Nome divino cuja propriedade o governa”. Responderíamos: a ignorância é uma qualidade que pertence ao não-existente (amr ‘adamī): não é ontológica. E os nomes divinos infundem somente a existência. Assim, a ignorância pertence àquele que é chamado (F. II, 592.32: SPK, p. 55).
Os Nomes que se apresentam na configuração da Identidade Essencial nem sempre formam um conjunto harmônico. Por exemplo, considerando-se que determinado indivíduo seja “configurado” por Lealdade, Coragem, Liberdade. Se ele não estiver atento, e conforme sua identificação com suas experiências biográficas, uma situação pode exigir Lealdade, mas ele pode se sentir aprisionado, pois a Lealdade gera um laço de restrição no comportamento quando confrontado com a Liberdade e com a Coragem. Se o indivíduo tiver um histórico de emoções negativas em relação à expressão de um destes aspectos, vai sentir uma divisão interna quanto ao melhor modo de agir. E este conflito aumenta ainda mais se várias pessoas estiverem envolvidas na mesma circunstância, pois ele teria que reagir diante de cada uma delas a partir de um aspecto diferente. Quando o indivíduo é ignorante da raiz desse conflito ele interrompe o influxo de um Nome pela sua recusa em alinhar a sua conduta. Ter consciência do processo o ajuda a escolher livremente a qual Nome servir (F. III, 64.7: SPK, p. 56), ou seja, em uma determinada situação, ele pode optar por agir através de qualquer um dos Nomes que constituem sua Identidade Essencial. Mas esta escolha é condicionada ao auto-conhecimento, o que implica no conhecimento da exigência do instante.
Devemos lembrar também que, apesar de cada circunstância priorizar um Nome específico em função do que lhe é exigido, o Nominado é sempre o mesmo. O problema, como Ibn ‘Arabī menciona no texto acima, é atribuir “o senhorio” a si mesmo, o que implica em um interesse pessoal voltado para o servo como agente. Escreve ele: “Pode ocorrer, entre os Nomes divinos, uma estação mútua, como uma luta por um indivíduo que tenha se oposto ao comando de Deus. Ele é buscado pelo Perdoador ou pelo Misericordioso, mas também pelo Vingador ou pelo que Prejudica15 ”(F. III, 526.12: SDG, p. 119). Neste caso – diz ele – por um lado, se a circunstância está sob a jurisdição da Lei, saberá o que é permissível ou não. Mas, por outro lado, se não houver prescrição sobre o assunto, tão pouco haverá erro, mas isto não isenta o servo de buscar a atitude mais apropriada e de investigar a origem do conflito, que pode estar na raiz de um capricho pessoal e não na exigência da circunstância, pois mesmo um Ato do Vingador não provoca dor se a vingança provêm do Real. Ao contrário, se a vingança surge a partir de um estado do eu-bašarī, a dor é inevitável.
Ibn ‘Arabī aconselha “esvaziar” o eu, distanciar-se da situação externa e aproximar-se do Senhor para então apreender a realidade: “O estado correto exige que a pessoa esvazie-se e desvincule-se de si mesma em prol do Um, pois o Um sabe que a pessoa desvinculou-se por Ele e esvaziou-se de todo ‘outro’ que não Ele. Então cabe a Ele assumir o assunto” (F. II, 417,22: SDG, p. 127). Isto permite que a face específica que intercepta a polaridade de uma situação possa se manifestar e libera o indivíduo em relação às exigências daquela circunstância. O processo exige auto-consciência e auto-consciência exige receptividade à vivência essencial.
O Šayḫ escreve sobre as várias práticas deste processo de auto-conhecimento16. Uma delas, e das mais exigentes, é a auto-análise. Afirma ele:
Existem três perigos que podem impedir que te examines a ti mesmo, que faças o balanço de teus atos e sejas grato a teu Senhor. O primeiro destes perigos é a inconsciência e a inquietude. O segundo é a avalanche de desejos e gostos que jorram de teu eu mortal. O terceiro são os maus hábitos, que te transformam em um autômato. Aquele que puder se proteger contra estes três perigos, com a ajuda de Deus, encontrará salvação em ambos os mundos.
Podemos facilmente entender esses três perigos dos quais fala Ibn ‘Arabī: o estresse do dia-adia acentua ainda mais a inconsciência e a inquietude: silenciar ou aquietar-se por um minuto é tarefa difícil para a maioria das pessoas. No entanto, responsabilizar o ritmo das obrigações cotidianas não é razoável, pois somos nós mesmos quem estimulamos, através das falsas identificações, o ritmo em que vivemos. Essas identificações decorrem exatamente dos caprichos do eu que nos conduzem a buscar exteriormente um modo de preencher a falta de Si mesmo. Como essa “avalanche” de caprichos nos deixa ainda mais vazios, nos transformamos em autômatos inconscientes, aferrados a hábitos que nos alienam ainda mais de nós mesmos. Silenciar – “retirar-se de si” – e ouvir o coração é o primeiro passo.
Retirar-se de si permite a escuta, o alinhamento com o coração, a Caaba do Ser, que continuamente recebe o influxo da Identidade e, portanto, informa todas as outras faculdades humanas, incluindo os sentidos, a mente e o intelecto. Assim, todo processo cognitivo, ou que leva à consciência, incluindo sensação física e imaginação, depende do influxo do Nome dominante, e toda percepção é um “sinal”, na “alma e no horizonte”, marcado pela Generosidade, ou pela Gentileza ou pela Bondade, Graça, etc. Escutar essa Presença é fundamental para a autoobservação.
Se o coração estiver “distraído”, ou adormecido ou ainda ocupado com as emoções, crenças e representações mentais reativas, permanece “velado” sob seus estados passados, torna-se “sujeito” destes e automaticamente surge uma “compulsão”17 associada a estas representações. Nesta condição perde-se o que o Šayḫ chama de um “tipo relacional de discernimento” que se baseia em distinguir “os níveis e o fato de que alguns (modos de conhecimento) são influenciados por outros, alguns refletem traços em outros e outros ainda dependem de outros” (SDG, p. 190), ou seja, uma superposição de significados que encobrem e confundem os atos do indivíduo sujeito a outro senão o Si mesmo.
Um segundo passo é o adab, alinhar coração e comportamento: o indivíduo fragmentado torna-se “integro” a partir do Si mesmo em reciprocidade com o mundo. Isso exige atribuir a cada um sua realidade, reconhecer no outro o “local” de onde ele fala, qual sua demanda e presença essencial. A escuta do coração permite um conhecimento “inspirado” do modo de agir, tornando todo ato “belo”, como escreve o Šayḫ:
Se as pessoas conhecessem o alcance daquilo que chamamos atenção com esta questão, nunca recompensariam alguém que lhes tenha feito um ato “feio” com atos igualmente “feios”; e nunca verias no cosmos senão aqueles que perdoam e são íntegros. No entanto, os véus sobre a visão interior são densos e não são nada além dos desejos pessoais e da intenção de apressar reação e vingança (F. IV, 24.11: SDG, p. 123).
E, se ainda assim a criatura não souber como agir, o Šayḫ dá um outro conselho: o imanente é o Belo e, portanto, toda expressão deve conduzir ao Belo e o Belo é “completo, íntegro”, iṣlāh. A atitude bela, ḥasanā, é um modo de “tornar-se íntegro”. O Íntegro, ṣāliḥ, é aquele que pratica “atos de integridade” (ṣāliḥāt) que não corrompem ou fragmentam nem a si mesmo nem ao outro e, deste modo, conduzem à salām, à paz, concórdia, à salāma, “o caminho da segurança”, da saúde e da integridade consigo mesmo. Ou seja, um ato íntegro é aquele mediado por ḥaqq18, pela veracidade e realidade dos sujeitos envolvidos; “tornar íntegro” é um modo de “fazer o belo”, iḥsān, que também implica em “perfeição”.
Para exemplificar esta questão, Ibn ‘Arabī usa o exemplo do Perdão (F. IV, 24.11: SDG, p. 123), palavra que possui sentidos “opostos”: ‘afw significa tanto eliminar, ultrapassar, quanto aumentar, ampliar, conceder. Assim, o “tornar belo” tanto anula o “feio” quanto amplia a magnitude da presença do Nome naquele que perdoa o que faz com que este indivíduo receba em si mesmo a presença ampliada de seu Senhor enquanto Perdão, e isto necessariamente implica em felicidade. Em um outro texto ele afirma: “Saiba, sincero ouvinte, que o Povo de Deus, quando o Real (alḤaqq) lhes chama para Si… coloca em seus corações algo que os atrai para a verdadeira felicidade. Assim eles buscam por ela até encontrarem em seus corações uma certa ternura e humildade e se esforçam pela paz e pelo alívio do estado das pessoas comuns que, em sua condição normal, possuem inveja mútua, ganância, hostilidade e oposição”.
Por um outro lado, não há nada de errado na vida: nela, o tawḥīd (unicidade) do si mesmo, a individuação, abrange a vivência do Real em trânsito: a cada momento um aspecto da identidade é chamado a se expor de acordo com a exigência ou a necessidade do tawḥīd coletivo e é este processo que caracteriza o ser necessário, o Ser atual em si: o ser necessário atualiza uma falta, uma ausência (ġāyb), na medida em que esta falta se plenifica como receptividade a uma presença determinada.
Na experiência da vida cotidiana isto implica em sinergia, onde cada criatura é, diante de outra, simultaneamente uma falta e uma presença: traz consigo uma determinação própria que busca se atualizar. É uma presença porque carrega sua própria determinação ou os valores fundamentais de sua Identidade; e é uma ausência porque sua singularidade não é a mesma do outro e, deste modo, os atributos que caracterizam o outro se expressam nela como uma falta. A atualização de presença/ausência só se estabelece onde se faz necessária, na reciprocidade com o outro ou na reciprocidade da subjetividade pessoal, na sinergia eu-Si mesmo.
À medida do desvelamento, do auto-conhecimento, corresponde a intensidade da inspiração, ilhām, a receptividade à Presença do Real no instante. Como define Jurjānī19, a inspiração é “um termo que designa o influxo da Presença divina no íntimo da consciência (rūḥ, espírito) e a ciência (‘ilm) que surge no coração”. Isto significa que a consciência amorosa ou unitiva se faz presente nos pares da correlação: no eu, como necessidade de atualizar o aspecto determinado da Presença, que é chamada a se manifestar a partir da falta ou da necessidade que o “outro” clama. No outro, a plenitude do aspecto de Presença que se expressa como falta diante do eu. As relações de eu-outro se estabelecem, portanto, no plano inerente à traduzibilidade eu-si-mesmo, eu-outro, presençaausência. A individuação, como atualização contínua das relações de necessidade e mutualidade entre os polos da realidade, transparece no mundo tanto quanto aparece no influxo da transitividade, descobre-se vivência amorosa. O Si mesmo coincide com o chamado de seu tesouro oculto.
Por Sandra Benato
1 Alone with the alone, p. 307 – nota 40, capitulo I .
2 Fayḍ, normalmente traduzida por “efusão”. Nesse texto uso a palavra “influxo” para sincronizar o sentido de “fluxo”, “interioridade” e “unicidade”.
3 Fuṣūs, trad. Austin, p. 210: O homem é múltiplo e não singular em sua essência, enquanto Deus é singular na essência mas múltiplo em relação aos Nomes divinos.
4 Segundo um processo de auto-observação. Quando descreve os Nomes Divinos, o Šaiḫ usa a perspectiva do ta‘alluq (dependência), do taḥaqquq (realização) e tajalluq (adoção, revestimento).
5 A palavra murāqaba é usada, nos círculos sufis, de modo equivalente às práticas meditativas, com o intuito de autoobservação e auto-análise, e como processo devocional de aproximação com o divino.
6 F. IV 199.15 – Chittick, Imaginal Worlds, p. 128.
6 O sentido da palavra “inconsciente” não é o mesmo que o usado na psicologia. Ibn ‘Arabī diz que os seres humanos são predispostos ao esquecimento pois todo fenômeno é um véu sobre o si mesmo e o maior dos véus é o eu-mortal. “Inconsciente”, portanto, tem o sentido de esquecimento, perda ou fragmentação da consciência de si.
7 Por mais que o influxo dos Nomes seja continuamente novo, eminentemente criativo, e isso resulte em circunstâncias externas distintas, o indivíduo sente que repete, ou atrai, um mesmo padrão de comportamento, os mesmos erros e as mesmas dificuldades. Se isso é assim, deve-se ao fato de que o indivíduo tem uma identidade “fixa”, ou seja, ele é o que sempre foi/será. Por não se conhecer, desconhece o Nome que se apresenta na recriação a cada instante.
8 Fusūs, trad. Burckhardt. p. 53 .
9 Aqui simultaneamente “causa e efeito”.
10 Ou dos que ignoram ou são ignorantes a respeito de Deus. Note-se que Ibn ‘Arabī não predica a aceitação passiva do sofrimento, como ocorre em algumas tradições, mas retorna ao Real, entendendo que o distanciamento aflige, pois resulta em uma desatenção à Presença, o que é, antes de mais nada, uma falta de cortesia (adab) para com o Senhor. Por outro lado, a aproximação e o aniquilamento também esvaziam a dor.
11 Ou seja, apresentou-se à Presença encoberta pela dor no braço. Lembramos que ‘labaik’, a seu serviço!, é uma expressão usada no ḥajj, durante a circumbulação da Caaba, para apresentar-se diante do Real.
12 Lembremos que o eu-bašarī, enquanto servo, é vazio de si. No entanto, sem essa consciência, é um acúmulo de representações e experiências históricas passadas que, por isso mesmo, são “sombras”, enquanto a luz da Presença, da qual é portador, está sempre no “instante” renovado continuamente.
13 Note-se que, essencialmente, não há contradição entre os Nomes, do mesmo modo que wujūd não possui opostos. Se houvesse um oposto a wujūd isso implicaria em um “outro” Real.
14 Ibn ‘Arabī define “traços de caráter de base” como aqueles associados à vivência do eu historicamente, decorrentes de sua identificação com o mundo; isto inclui a educação, religiosidade, cultura, local e época de nascimento, assimilação de comportamento alheio, valores éticos e morais, etc.; e “traços de caráter nobre”, que são os atributos que configuram a Identidade Essencial, a face voltada para o Senhor.
15 Devemos entender que todos os Nomes são inerentemente positivos pois nominam forças ontológicas. O Vingador ou O que Prejudica são Nomes tomados a partir dos Atos divinos, das consequências ontológicas segundo a reciprocidade entre os Nomes, entendendo-se que somente O Real é quem, de fato, age. Por ex., em uma situação onde haja uma ofensa e, entre os Nomes daquele que recebe a ofensa esteja a Coragem, a situação da ofensa invoca nele a necessidade da coragem que pode ser entendida como uma “vingança”. Ou, se o Nome que se apresenta àquele que ofende for O Justo e esse indivíduo age a partir da biografia do eu mortal, com certeza ofende por motivo egóico e, nesse caso, só se torna receptivo ao Perdão na medida em que reconhece seu erro, o que implica em desvelamento, elevação da consciência e “polimento” do coração. O Perdão só ocorre onde há arrependimento. Assim, para Ibn ‘Arabī, tudo o que aparece, ainda que múltiplo, é um desvelamento da Misericórdia divina.
16 Kitab Kunh ma la budda minhu lil- murid. É um livro escrito em Mosul, Iraque, em 1204, como uma série de conselhos aos buscadores da espiritualidade. Existem várias traduções disponíveis; a que usamos é de James W. Morris, que consta no site da MIAS -http://www.ibnarabisociety.org/articlespdf/sp_seeker.pdf
17 A palavra compulsão, jabr, não deve ser entendida no sentido freudiano, ainda que o sentido freudiano também esteja incluído no modo que Ibn ‘Arabī trata este termo. A compulsão que advém da sombra é um velamento do eu e a compulsão que advém do influxo do Nome predominante no momento é sentida como um comando do Senhor, como um modo de Presença essencial no qual o eu não se expressa a partir de uma reatividade pessoal mas do seu esvaziamento, que propicia o desvelamento.
18 Segundo o ḥadīt: “Sua alma tem um direito sobre ti, seu Senhor tem um direito sobre ti, seu hóspede tem um direito sobre ti, sua esposa tem um direito sobre ti; dê a cada um que detenha um direito o que lhe é de direito”.
19 Jurjānī, Le Livre des Définitions, termo 212, p. 83. Ver também as entradas 681 e 1722.